MAPA, nuestro periódico hermano portugués, nos ha regalado para este número un artículo sobre la transformación del paisaje agrícola en el Algarve remontándose varias décadas atrás: industrialización, pérdida de biodiversidad y saberes tradicionales, explotación de migrantes. Una problemática similar a la de Andalucía. Un texto que merece la pena leer en su idioma original.
Entre as páginas do Topo Tabernario na Andaluzia e do jornal MAPA em Portugal há esboços de uma paisagem em comum. Compartimos e falamos de territórios a sul. Talvez seja essa a melhor forma de designar uma geografia cujas fronteiras são artificialismos quando olhamos as histórias comuns que se repetem de um e do outro lado do rio Guadiana e mais além.
I
Nesta nossa margem e neste nosso Sul, uma acelerada transformação da paisagem agrícola alentejana tem vindo a ocorrer nestas duas últimas décadas através da imposição de um novo paradigma socioeconómico, que ficou conhecido na região pela importação do modelo do «olival espanhol» intensivo e superintenso. A nova paisagem agrícola prometida pelos mais de 120.000 hectares de regadio do Alqueva, o maior lago artificial da Europa, ficou reduzida à expansão agroindustrial das monoculturas de olivais e amendoais no interior alentejano do Baixo Alentejo. Ao mesmo tempo que no litoral proliferam os mares de plástico das estufas de frutos vermelhos. Com a promessa do desenvolvimento, veio a degradação sem precedentes da paisagem, a poluição de recursos naturais e o contexto da moderna neo-escravatura capitalista que afeta milhares de trabalhadores migrantes que laboram nos campos do Sul.
Nestas transformações, que vêm de longe, o camponês morreu. A tecnologia celebra a agricultura dita de precisão e «inteligente» que, em nome de safras históricas como será este ano o olival, finta reiteradamente os ciclos ecológicos e a racionalidade futura de um território, para que, com mais água, cubra de verde um deserto hipotecado pela crescente degradação dos solos. Os saberes geracionais do camponês na sua relação equilibrada e de escala compatível com a natureza são uma imagem do passado. Triunfa o agricultor modernizado tecnologicamente e subvencionado. E mesmo os rostos dos grandes senhores terratenentes desaparecem sob o manto sem rosto e nem rasto do capital financeiro que hoje comanda a agricultura.
A permissividade instalada para a exploração industrial da paisagem comporta consequências ambientais e sociais inseparáveis. Porque as questões ambientais da terra – degradação dos solos, dos recursos hídricos, perda de biodiversidade, etc. – não podem ser separadas, como processos de luta e resistência, das questões sociais da terra: a posse da terra, quem nela manda e quem e como a trabalha.
Levanta-se, em primeiro lugar, uma inquietação: o desencontro entre os migrantes explorados nos campos e nas estufas e as gerações das famílias das vilas e dos lugares do nosso Sul em comum. Um muro de indiferença num território que vive silenciosamente uma tensão social fracturante. E, pior, que quando se manifesta se afunda no preconceito racista e na emergência de um conservadorismo rural fascista. Em resposta e ao invés, resta questionar e lutar pela solidariedade entre quem habita e persiste hoje nos territórios esvaziados de gente e os migrantes sem nome do Hindustão, do Leste europeu, da África subsariana e do Norte de África. A história, neste campo, é sempre um auxiliar precioso com vista ao resgate de uma outra vida possível.
II
A história pode recuar ao dia de ontem. No passado dia 11 de dezembro foram resgatados, numa embarcação à deriva a 55 milhas náuticas da costa algarvia, 37 pessoas. Ao Algarve chegaram por mar 137 migrantes desde dezembro de 2019. Vieram de Marrocos, em frágeis embarcações de madeira, atingindo uma porta de entrada que dizem ser para Espanha. Mas a história obriga necessariamente a recuar mais atrás, ao tempo em que éramos nós – gentes deste Sul em comum – a arriscar a vida noutros barcos. O percurso era então o inverso.
Há que recuar aos anos 1930 para depararmos com relatos de débeis barcos repletos de migrantes a atravessar o estreito. Da Europa para África. Encontramo-los nos arquivos poeirentos trazidos à luz pela tese de 2012 de Maria do Livramento Dias (Emigração Clandestina durante o Estado Novo. O fluxo migratório ilegal do sotavento do Algarve para Marrocos); e ainda na ocultada memória oral de muitos algarvios. Uma memória que fala dos seus pais e avós e de uma «migração clandestina» secularmente enraizada nas relações do Algarve com a Andaluzia e Marrocos. Regiões por onde circulavam regularmente, em busca de trabalho, para os campos agrícolas e a faina piscatória da Andaluzia, ou atraídos para Marrocos para os sectores piscatório, conserveiro e da construção civil. O movimento com destino a Casablanca, Rabat, Quenitra, Tânger e Fez, então sob o protectorado colonial francês, alimentava os trabalhos temporários em armações de atum e em fábricas de conservas de peixe.
Aqui chegados, talvez seja mais fácil entender e situar a inquietação que é urgente declarar perante o desencontro entre os migrantes explorados nestes campos do Sul e as gerações herdeiras dos migrantes peninsulares que arriscaram as suas vidas no Estreito. A inquietação pela perda de solidariedades e desse saber do «ontem fomos nós, hoje são eles».
A inquietação pela perda de uma paisagem não se cinge, por tudo isto, ao mero elencar das perdas irreversíveis dos nossos recursos naturais e, consequentemente, das futuras possibilidades de vida postas em risco pelas monoculturas extrativistas dos nossos territórios em comum. A inquietação pela perda de uma paisagem é também a inquietação pela perda da memória transmissível dos nossos pais e avós. Pela perda dos laços, feitos de gente, de relações e cumplicidades, forjados entre cá e lá do Estreito. E aqui mesmo à nossa beira, neste nosso Sul em comum, entre as duas margens do Guadiana.